Por Emir Sader, no Carta Maior
O Estado sintetiza, de alguma maneira, a sociedade que temos. O político condensa, sintetiza, o conjunto das relações econômicas, sociais e culturais – na visão de Marx.
O Estado brasileiro, antes de 1930, era literalmente o Estado das oligarquias primário-exportadoras: dos setores que produziam para a exportação e dos que comercializavam essa produção e importavam das metrópoles para o consumo das elites. Era um Estado de uma ínfima minoria, governando para o interesse dessa ínfima minoria. A grande maioria da população nem era contemplada pelo Estado, nem se reconhecia nele.
A primeira grande transformação do Estado brasileiro se deu a partir de 1930. O Estado começou a assumir responsabilidades sociais, contemplando a setores populares como cidadãos – sujeitos de direitos -, passou a incentivar a economia voltada para o mercado interno, permitiu o inicio do processo de sindicalização dos trabalhadores, formulou uma ideologia nacional e começou a aparecer como o Estado de todos os brasileiros.
Esse Estado, correlato aos processos de industrialização, de urbanização, de sindicalização, de democratização social e politica, teve um freio radical com o golpe de 1964. A ditadura militar se impôs como governo das elites dominantes contra os setores populares. Além da brutal repressão contra o campo popular e tudo o que tivesse que ver com democracia, impôs o arrocho salarial e a intervenção em todos os sindicatos, promovendo uma lua-de-mel para as grandes empresas nacionais e estrangeiras. Crescia a economia, mas não se distribuía renda, se concentrava a riqueza e se multiplicava a desigualdade e a exclusão social. O Estado tinha se tornado, de novo, um instrumento exclusiva das classes dominantes.
A democratização permitiu a recuperação de muitos dos direitos democráticos abolidos pela ditadura, permitindo uma nova identificação da população com o Estado, por meio da democracia. Mas esta coincidiu com a explosão da crise da dívida – uma divida alimentada criminosamente pela ditadura militar, que endividou o país sem benefícios para a massa da população e a juros flutuantes. Com a elevação brutal da taxa de juros, a economia do país quebrou, foi interrompido o processo de desenvolvimento econômico que, de uma ou outra forma, tinha se estendido desde 1930. Se desmoralizava a democracia, porque não promovia o bem estar da população e postergava a eleição direta do presidente, até que sua desmoralização levou à eleição de algum provindo da ditadura pouco tempo depois do fim desta, como presidente.
Collor, Itamar e FHC representam a era neoliberal no Brasil, em que o Estado foi reduzido às suas mínimas expressões, a economia foi desregulamentada, o mercado interno aberto aos capitais externos, as relações de trabalho foram precarizadas. O Estado tornou-se o Estado das grandes corporações nacionais e internacionais, sob o reino do mercado e da brutal reconcentração de renda que ele produziu.
O Estado voltou a ser desmoralizado nos discursos de Collor, de FHC, nos meios de comunicação, como inútil, negativo, que arrecada impostos tomando dinheiro dos cidadãos, que é ineficaz, burocrático, que prejudica o funcionamento dinâmico da economia. Em contraposição, se fazia a apologia do mercado, a quem foi entregue valioso patrimônio publico sob a forma das privatizações, deixando circular livremente o capital, para dentro e para fora do país, diminuindo ainda mais a presença do Estado nas politicas sociais. O Estado se afirmava, mais ainda do que no passado, como instrumento das elites do país, contra os interesses nacionais e populares.
Nos últimos anos o governo foi recuperando o prestigio do Estado. Os impostos foram sendo devolvidos à cidadania por intermédio das politicas sociais, pela melhoria do atendimento da população, extensão da educação publica, melhoria relativa da saúde publica. O Estado se responsabilizou por enfrentar a crise, impedindo que produzisse aqui – como em muitos lugares – uma recessão profunda e prolongada.
Mas tudo isso foi feito na contramão de um Estado que tinha sido feito para não agir, para deixar que o mercado ocupasse todos os espaços. Um Estado burocratizado, adaptado às irregularidades e corrupções, nada transparente, feito para manter a sociedade e o poder como eles são, incapaz de promover suas transformações democráticas.
Em primeiro lugar, o espírito público, a ideia de que não são funcionamentos do Estado, remunerados pelo Estado, mas são servidores públicos, remunerados com os impostos da cidadania e que se devem a ela, tanto na prestação de serviços, como no respeito às leis e normas.
Em segundo lugar, que ocupam cargos por concursos públicos, a forma mais democrática de preenchimento de cargos. Que devem prestar contas periodicamente à cidadania do cumprimento das funções que lhes são assignadas. Que devem ter plano de cargos e salários e avaliação permanente do seu desempenho.
Em terceiro lugar, deve haver transparência absoluta de quem financia o funcionamento do Estado e a quem o Estado transfere os recursos arrecadados. Hoje a estrutura tributaria é muito injusta, recaindo o essencial sobre os mais pobres, com o Estado transferindo uma parte do que arrecada para o capital financeiro, por meio do pagamento das dividas do Estado. O Orçamento Participativo é um instrumento essencial ao caráter púbico e democrático do Estado. Suas formas de existência tem que ser adequadas ao funcionamento eficiente do aparelho do Estado, mas tem que ser transparentes e ser controladas pela cidadania.
O Estado tem que governar para toda a população, tendo neste critério o filtro fundamental das suas decisões. Para que isso ocorra, a cidadania tem que ter mecanismos de informação – que podem ser via internet – e de discussão e controle da atuação dos governos. Os mecanismos de ratificação dos mandatos são uma das formas desse controle, quer permitem atualizar a legitimidade dos governos como produto da avaliação do seu desempenho.
Para que possa haver uma relação democrática e transparente entre governantes e governados, é preciso democratizar radicalmente os meios de comunicação, para que deixem de expressar um setor apenas – claramente minoritário hoje – da população, para propiciar informação minimamente fidedigna, espaços de debate que contem com opiniões que expressem de forma pluralista o que pensa a cidadania no seu conjunto e não apenas a minoria. Para isso é necessário uma imprensa pública – estatal e não estatal – que não seja financiada pelos grandes capitais privados – como acontece atualmente – e que amarra os interesses dessa mídia com os interesses dos mais ricos e poderosos.
Finamente, é necessário terminar com o analfabetismo e com o analfabetismo funcional – que somam a cerca de um terço da população – para que seja possível a informação e o debate generalizados por toda a população do país.
Consolidar, estender e aprofundar um governo para todos requer um Estado adaptado aos interesses das grandes maiorias do país, que demanda portanto profundas transformações – que podem ser obtidas mediante a convocação de uma Assembleia Constituinte autônoma, como a anunciada por Lula e por Dilma na recente campanha eleitoral.
Tenho certeza de que Dilma sabe o que tem que fazer para melhorar ainda mais nosso país!
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