Por Robson Fernando, no Acerto de Contas
Criticar o jornalismo da Globo é como chamar o diabo de mau, mas ainda é necessário, pois a crítica dá ao outro lado a voz que a emissora negou e serve para dar um alerta àqueles telespectadores menos dotados de senso crítico. E agora a ação dos críticos foi acionada novamente, pois o Globo Repórter de 04/02 engajou-se numa romântica e amoral apologia às touradas, exaltando sem pudor uma atividade que hoje deveria ser impossível não ser vista como algo no mínimo polêmico.
Nessa edição, falou-se da Espanha, com suas maravilhas turísticas e boas condições de vida – exceto para os militantes do separatismo basco e catalão, mas isso é assunto para outros textos –, e incluiu-se a tourada como se ainda fosse parte indiscutível da essência cultural e turística espanhola. Exceto por poucos segundos em que se citou parcamente a oposição de muitos espanhóis à atividade, foi só elogios e exaltações quase líricas ao ato de torturar e assassinar touros em arenas, como se isso não dividisse opiniões nem fosse visto por meio mundo como motivo de vergonha, em vez de orgulho, àquele país.
Não faltaram substantivos a enaltecer o pseudoesporte em questão: “paixão”, “elegância”, “arte”, “beleza”, “coreografia perfeita”. Sem falar das consistentes homenagens à vocação dos toureiros, cujas biografias seriam fichas policiais em outros países. À Globo, o “espetáculo” de violência, sangue e morte que revolta literalmente meio mundo é tão belo e aprazível quanto a arquitetura da Sagrada Família, a coreografia do flamenco ou o surrealismo de Salvador Dalí.
O “gol de honra” permitido pela Globo ao outro lado não durou nem um minuto. 50 segundos foi a duração do único momento da matéria em que a defesa animal antitourada foi citada – e ainda de forma inócua, muito fraca. Nem mesmo aquela que deveria ser a palavra-chave da reportagem – polêmica – foi sequer citada. A voz crescente da defesa animal contra a tauromaquia, um dos únicos temas relativos a Direitos Animais que unem bem-estaristas e abolicionistas, foi reduzida um murmúrio risível de tão xoxo.
Uma frase de poucos segundos citada indiretamente de uma única defensora animal, um resumo pequenino e pueril dos longos discursos de quem defende a vida e a integridade dos animais e o banimento da violência das tradições espanholas, foi o único argumento exibido para a oposição ao assassinato de touros: “esta é uma tradição cruel, e o que fazem com o animal é uma tortura”.
E a repórter, demonstrando desconhecer totalmente a consciência e o panorama político-cultural do povo catalão, ainda afirmou que “parecia impossível” banir a tourada da Catalunha pelo apelo popular e legal.
Tenta-se entender entre os que declaram gostar e respeitar os animais – desde os veganos militantes até os simpatizantes dos protetores de cães e gatos – por que a Globo transformou um assunto tão polêmico, conflituoso, eticamente questionável e repudiado por milhões de pessoas até mesmo dentro da Espanha em uma atração agradável, admirável, apaixonável e virtuosa. Que interesses podem ser inferidos a partir do ato de apoiar, a milhares de quilômetros de distância, a indústria da tourada de outro país?
A Globo mostra que, se não é mal intencionada, tem sua visão “ética” de mundo parada lá atrás no tempo. Estacionada numa época em que defender animais era nada mais que cuidar de cães e gatos abandonados e criticar touradas, rodeios e vaquejadas era considerado “falta do que fazer”.
A emissora vem perdendo o respeito e a audiência dos brasileiros, e essa pérola de jornalismo míope vai acelerar esse desgaste, já que hoje, felizmente, grande parte da população brasileira, dos veganos até os onívoros mais inveterados, repudia as touradas e deseja a sua proibição na Península Ibérica e em qualquer outro país.
Robson Fernando é autor do blog Arauto da Consciência.
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